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Jun 19, 2024

Entrevista com o advogado João Gabriel sobre as regulamentações da cannabis medicinal no Brasil

Entrevista com o advogado João Gabriel sobre as regulamentações da cannabis medicinal no Brasil

Na busca por compreender ainda mais a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil, conversamos com João Gabriel, advogado especialista em demandas regulatórias no setor da cannabis, membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC) e da Comissão da Cannabis Medicinal e do Cânhamo Industrial da OAB/DF. Nesta entrevista, o advogado compartilha perspectivas claras sobre os desafios e avanços legislativos, realçando as transformações e as expectativas para o crescimento do setor.
 
 
"Apesar dos progressos, o cenário regulatório da cannabis medicinal ainda é fragmentado e cheio de desafios, exigindo uma abordagem cuidadosa para garantir segurança e eficácia para os pacientes." — João Gabriel
 

Como você vê o atual cenário regulatório da cannabis medicinal no Brasil? Quais são os principais desafios enfrentados pelas empresas que atuam nesse setor?

 
 
 

Evolução da Regulação

 
“Desde 2015, observamos uma transformação na abordagem regulatória da cannabis medicinal no Brasil. Entretanto, as regras atuais ainda baseiam-se em exceções à proibição geral, o que gera incertezas e limita o desenvolvimento do setor, especialmente com a proibição do cultivo nacional, complicando a produção local de derivados da cannabis e a realização de estudos clínicos essenciais.”
 
 
 

Desafios Enfrentados

 
“Acredito que os principais desafios estejam relacionados à regulação, que apesar de ter avançado, ainda é imprecisa e incompleta. Hoje temos um modelo regulatório baseado em exceções à proibição geral de atividades que envolvem a Cannabis. Todo um setor produtivo está enquadrado nessas exceções, o que provoca certa insegurança nos agentes econômicos e impede o pleno desenvolvimento da indústria. Fora as dificuldades para manufaturar os produtos derivados de Cannabis, já que o cultivo permanece proibido no país, e para conduzir estudos clínicos suficientes para posterior registro do produto como medicamento.”
 
 
 

Quais são as principais leis e regulamentações que as empresas de cannabis medicinal precisam cumprir no Brasil? Existem diferenças significativas em relação a outras jurisdições?

 
“O modelo regulatório está baseado em exceções à proibição geral, como disse anteriormente. As normas proibitivas estão expressas na Lei Federal n. 11.343/06 (lei de drogas) e na Portaria MS/SVS 344/98, que complementa a lei federal. Resumidamente, a Portaria define que a planta cannabis sativa é proscrita, assim como a substância THC, enquanto o CBD é uma substância controlada. “
 
 
 
“Nessa mesma Portaria, encontramos os adendos que representam as exceções à proibição. Os adendos foram sendo introduzidos a partir das resoluções de diretoria colegiada (RDC) que passaram a permitir o uso, prescrição, dispensação, importação, fabricação, comercialização de produtos que contenham substâncias oriundas da planta. Hoje as principais resoluções são a RDC 327/2019 e a RDC 660/2022.
 
 
 

Como é o processo de obtenção de licenças e autorizações para cultivar, produzir e comercializar produtos de cannabis medicinal no Brasil? Quais são os principais requisitos e etapas desse processo?

 
“Atualmente a Anvisa dispõe de uma resolução específica que permite o cultivo de plantas das quais possam ser extraídas substâncias sujeitas a controle especial, como a cannabis sativa, a partir de Autorização Especial Simplificada (AEP) para instituições de ensino e pesquisa. Fora da seara científica e do âmbito estritamente acadêmico, o cultivo permanece proibido e é viabilizado juridicamente somente a partir de decisões judiciais, como ocorre no caso dos Habeas Corpus preventivos, individuais ou coletivos, para pacientes e associações de pacientes.“
 
 
 
“Para que a medida seja exitosa, é necessário comprovar a necessidade médica do tratamento com produto artesanal derivado da planta e o risco de ter o tratamento interrompido por uma eventual medida repressiva por parte das autoridades policiais.”
 
 
 

Quais são as principais responsabilidades legais e regulatórias das empresas que atuam no mercado de cannabis medicinal? Como elas podem garantir o cumprimento dessas obrigações?

 
“As empresas que atuam no setor precisam atender aos critérios estabelecidos pelas vigilâncias sanitárias locais e pela Anvisa para as atividades relacionadas à fabricação, importação, comercialização, dispensação e transporte de produtos à base de Cannabis. A título de exemplo, para que uma empresa se submeta ao processo de obtenção de Autorização Sanitária para fabricação e comercialização desses produtos, é necessário que obtenha previamente:
 
 
Autorização de Funcionamento (AFE)
 
 
Autorização Especial (AE)
 
 
Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF)
 
 
Além de licença de funcionamento junto à vigilância sanitária local, racional técnico e científico
 
 
Documentação da qualidade do produto e outras medidas que conferem a segurança e qualidade dos produtos à base de cannabis que são disponibilizados em solo nacional.
 
 
 

Quais são os principais riscos legais associados à operação de uma empresa de cannabis medicinal no Brasil? Como as empresas podem mitigar esses riscos?

 
“A mitigação dos riscos está atrelada às práticas de compliance estabelecidas por essas empresas e a atuações estratégicas e regulatórias bem definidas. Como pode ser observado na resposta anterior, são inúmeras as exigências estabelecidas pela Anvisa, sendo que a transgressão dessas normas pode ensejar a paralisação ou obstacularização dos procedimentos administrativos perante a agência reguladora, ou, em alguns casos, a aplicação de normas sancionadoras no âmbito sanitário.”
 
 
 
“De qualquer forma, não podemos nos esquecer do limbo regulatório que estão envolvidas as empresas que realizam a intermediação da importação de produtos derivados de Cannabis para pacientes, nos termos da RDC 660/2022. Sabe-se que a resolução é destinada aos pacientes, não havendo disposição específica sobre a atuação dessas empresas que muitas vezes operam enquanto representantes comerciais, agentes de intermediação de serviços e apoio administrativo. Nesse caso, o risco está circunscrito às questões tributárias e ao fluxo financeiro dessas empresas, as quais recebem muitas vezes o pagamento do produto e do serviço de intermediação sem efetuar qualquer repasse à empresa fabricante e exportadora. O risco fiscal é eminente.”
 
 
 

Como a legislação brasileira aborda questões como importação, exportação e transporte de produtos de cannabis medicinal? Existem restrições específicas que as empresas precisam estar cientes?

 
“Existem regulamentos específicos que abordam essas atividades e normas que dispõem sobre regulamento técnico e procedimentos para importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária. A RDC 659/2022, por exemplo, dispõe sobre o controle de importação e exportação de substâncias, plantas e medicamentos sujeitos a controle especial. Esse ato normativo estabelece, entre outras disposições, portos e aeroportos de entrada e saída dessas substâncias, cotas de importação, procedimentos para obtenção de Autorização de Importação Específica (AIE) e Autorização de Importação para fins de ensino, pesquisa ou desenvolvimento (AIP).”
 
 
 
“Há restrições até para a importação individual de produtos derivados de Cannabis. A RDC 660/2022 proíbe a importação por meio de remessa postal, sendo viabilizada somente através de remessa expressa e bagagem acompanhada.”
 
 
 

Como as empresas de cannabis medicinal podem lidar com questões relacionadas à publicidade e marketing, considerando as restrições legais e éticas em vigor?

 
 
 
“Como falar sobre Cannabis sem falar da Cannabis?”
 
“Como se sabe, não é permitida a realização de publicidade com substâncias e produtos sujeitos a controle especial. Assim como não vemos propaganda explícita de marcas de benzodiazepínicos, a mesma restrição - pelo menos em tese - é aplicada aos produtos derivados de Cannabis. Portanto, um dos maiores desafios das empresas é falar sobre Cannabis sem fazer alusão direta às marcas e aos produtos comercializados e por essa razão é de extrema importância as empresas adotarem estratégias de comunicação alinhadas às práticas de compliance. Aliás, não podemos esquecer que as próprias plataformas digitais impõem restrições quanto ao uso da expressão cannabis, maconha, droga etc. “Como falar sobre Cannabis sem falar da Cannabis?”
 
 
 
“A abordagem de temas conexos pode ser uma saída. É possível falar sobre Cannabis abordando questões sobre bem-estar, qualidade de vida, alimentação, prática de esportes, lazer, sexualidade, saúde mental, sustentabilidade…”
 
 
 

Quais são os principais requisitos para a realização de pesquisas científicas sobre cannabis medicinal no Brasil? Como as empresas podem colaborar com instituições de pesquisa de forma legal e ética?

 
“Via de regra, a Anvisa autoriza pesquisa científica com produtos derivados de Cannabis. A própria Portaria 344/98 excetua à proibição do uso de substâncias e medicamentos proscritos as atividades exercidas por Órgãos e Instituições autorizados pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde com a estrita finalidade de desenvolver pesquisas e trabalhos médicos e científicos. Ainda, a própria RDC 659/2022 estabelece critérios para adquirir e utilizar as substâncias, plantas e medicamentos sujeitos a controle especial, com finalize exclusiva de ensino e pesquisa. Para tanto, as instituições de ensino superior ou técnico devem solicitar Autorização Especial Simplificada (AEP).”
 
 
 
“Nesse ponto, acredito que as empresas podem auxiliar as instituições a partir da doação de insumos e até mesmo colaboração financeira para condução desses estudos. Todo o setor pode se beneficiar com o avanço dos estudos científicos, por isso a necessidade das empresas assumirem esse papel colaborativo.”
 
 
 

Como você vê o papel do poder judiciário brasileiro na evolução do quadro regulatório da cannabis medicinal? Existem casos recentes que podem indicar mudanças significativas no futuro próximo?

 
“Considerando a dinâmica e atuação dos 3 poderes, podemos afirmar com muita precisão que o Poder Judiciário foi o mais corajoso e disruptivo até o momento, a partir da provocação e condução de um trabalho incansável e aguerrido por parte da advocacia. Foram anos de trabalho para se chegar à uniformização do entendimento pelas duas turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça quanto ao cabimento de Habeas Corpus preventivo. Do mesmo modo, foi a partir de uma Ação Civil Pública que a Anvisa editou o primeiro regramento sobre a importação individual de produto derivado de cannabis.”
 
 
 
“Também, foi graças ao Poder Judiciário que um pouco mais de uma dezena de associações de pacientes possui autorização para cultivar a planta e distribuir o medicamento entre os pacientes associados. Quanto ao fornecimento pelo SUS, muito antes da edição de leis municipais e estaduais, coube ao sistema judiciário consolidar o entendimento para que a população sem capacidade econômica e financeira pudesse acessar o medicamento de forma gratuita, fornecido pelo Estado.”
 
 
 
“Recentemente, está em discussão o Incidente de Assunção de Competência (IAC) 16/2023 para definir a possiblidade de concessão de Autorização Sanitária para importação e cultivo de variedades de Cannabis com baixo teor de THC com fins medicinais, farmacêuticos e industriais. Podemos estar diante de mais uma quebra de paradigma propiciada pelos ministros do STJ em face à omissão da União na regulamentação da matéria.”
 
 
 

Quais são as tendências futuras que você enxerga para a regulação da cannabis medicinal no Brasil? Existem projetos de lei em andamento ou outras iniciativas que possam impactar o setor nos próximos anos?

 
“As tendências futuras e mais evidentes até o momento podem ocorrer pelo reconhecimento de novas formas farmacêuticas, formas de administração dos produtos, manipulação por farmácias magistrais e diferentes usos, como o dermatológico.”
 
 
 
“Mas a caminhada ainda é longa e o mato continua alto, apesar dos avanços. Não haverá modelo regulatório suficiente enquanto o cultivo e o autocultivo permanecerem proibidos. Por isso, devemos evoluir para um modelo regulatório responsivo, que atenda aos interesses dos agentes econômicos e compreenda a complexidade da realidade social de um país tão desigual como o Brasil. Existe uma parcela da população, afetada pelo proibicionismo, que não deve ser desconsiderada nos processos de tomada de decisão. Pessoas ainda são presas por cultivarem maconha, mesmo que a finalidade seja medicinal, e precisamos apresentar uma resposta justa para essa mazela social.”
 
 
 
“Alguns projetos de lei sobre o tema tramitam nas casas legislativas. O mais avançado até o momento, que estabelece um marco regulatório sobre o cultivo de cannabis no Brasil, é o famigerado PL 399/2015 que foi aprovado em comissão especial, mas aguarda ser colocado em pauta na Câmara dos Deputados para votação de recurso apresentado pela oposição. Todavia, observo que no momento não há viabilidade política para condução e aprovação do projeto de lei, já que a cannabis medicinal não é agenda prioritária no Congresso.”
 
 

Conclusão

 
A regulamentação da cannabis medicinal no Brasil está em constante evolução, e conversas como a que tivemos com João Gabriel são essenciais para entendermos as complexidades e os avanços desse setor. Embora existam desafios significativos, como a restrição do cultivo nacional e a incompletude das normativas, o futuro parece promissor com a possibilidade de novas regulamentações e formas de uso. À medida que o diálogo entre os profissionais legais, as autoridades regulatórias e a sociedade avança, esperamos ver um ambiente cada vez mais favorável para o desenvolvimento sustentável do mercado de cannabis medicinal no Brasil.
 
 
 
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